segunda-feira, 27 de abril de 2015



Filhos da madrugada...

A incursão pedestre à Serra da Estrela (Junho de 74) organizada pelo Eduardo Osório


Ganhou profundas raízes, a pergunta que Baptista-Bastos vulgarizou em antigo programa de entrevistas, "Onde é que você estava no 25 de Abril?" E de facto, enquanto alguns representantes das gerações que já tinham consciência em 74 sobreviverem, haverá sempre quem saiba responder com plena propriedade e maior nostalgia àquela questão. Estava então nas vésperas de fazer 22 anos de idade mas, passados 41 anos, consigo ainda descrever todas as horas desse dia fundador. No entanto, glosando ainda o Baptista-Bastos, gostaria de pôr a questão de outra maneira. Quem que te avisou no 25 de Abril? É que a cena volta à minha lembrança em cada 25 de Abril que passa. Acordei nesse dia com um estridente toque de campainha seguido de vozes no corredor do pequeno apartamento dos meus pais com quem ainda morava, na Amadora. Não tive sequer tempo de me levantar, pois de imediato estava ao meu lado o Eduardo Osório, cujos pais viviam perto, muito agitado, que me pedia para acender o rádio. Correspondi á ordem, ainda estremunhado e sem me levantar, pois bastava esticar o braço para chegar ao aparelho, e lá começamos a ouvir as marchas militares (em si pouco animadoras...) interrompidas de tempos a tempos pelo enigmático comunicado do desconhecido Movimento das Forças Armadas...

Ambos frequentávamos já a Faculdade, o Eduardo Osório Gonçalves em Arquitectura e eu em História, e estávamos no pleno da nossa juventude, social e culturalmente muito empenhados (menos politicamente, por razões óbvias e até familiares) participando através de um grupo de jovens amigos, em projectos de alfabetização e animação cultural nos numerosos "bairros de barracas" da Amadora e Brandoa, sob a cobertura do então Padre João Bragança, coadjutor na paróquia local. A predisposição para a mudança era total e assim passámos o resto desse dia 25, em grande ansiedade e agitação, só apaziguada pela cada vez mais "contestatária" banda sonora que dominávamos completamente e que a rádio ia transmitindo naquela que terá sido uma das últimas revoluções do século XX, sem televisão. O nosso grupo, em boa parte liderado pelo Eduardo, graças à sua especial veia artística, nomeadamente musical, ainda se envolveria nalgumas acções comuns, mas face à louca dinâmica social da época e aos vários interesses escolares, rapidamente se dispersaria ficando apenas a amizade entre todos. Em 74, eu participava já regularmente nos trabalhos arqueológicos promovidos pelo GEPP, o grupo de estudantes da Faculdade de Letras envolvido no estudo da arte rupestre do Tejo, descoberta em Vila Velha de Ródão no final de 1971 e o Eduardo Osório, que colaborava já com conhecidos arquitectos, envolver-se-ia rapidamente no processo SAAL, com Nuno Portas (que proferira pouco antes do 25 de Abril, a pedido do Eduardo, uma palestra na cave da Igreja da Amadora, sobre o problema das "barracas" o que motivou um especial "interesse" da polícia pelo tema). Em Junho de 1974, poucas semanas depois do 25 de Abril, o grupo da Amadora ainda se envolveu no que seria uma das derradeiras iniciativas em comum. Organizada pelo próprio Eduardo, cuja família era natural de Nespereira (Gouveia) onde ainda possuía uma casa meio senhorial, fizémos uma inesquecível excursão pedestre à Serra da Estrela (a segunda paixão do Eduardo, depois da Arquitectura). Durante uma semana, sob a orientação do Eduardo "perdemo-nos" pelos vales mais recônditos da Serra, acampando onde calhava, bebendo água dos ribeiros e fugindo sempre que podíamos das estradas. Ainda que já imbuídos no maior respeito pela mãe natureza e com interesses diversos que decorriam já da nossa formação universitária, pelo menos dos mais velhos, não resistimos a uma pequena tropelia, própria da juventude e dos tempos. Não muito longe da Torre, do lado do Gouveia, havia à época sobre um penedo bem destacado na paisagem, uma grande  estátua de cimento, cópia algo tosca de um dos célebres guerreiros castrejos, de que o Museu nacional de Arqueologia conserva alguns exemplares. Uma inscrição remetia a figura, para Viriato, o guerreiro lusitano, erroneamente associado por alguma historiografia tradicional, aos Montes Hermínios, ou seja à Serra da Estrela. É certo que o fascismo português, bem ao contrário do italiano, alemão ou mesmo espanhol, nunca viu na arqueologia qualquer interesse apologético especial, à parte de uma única excepção, Viriato. De tal modo que os portugueses que participaram pelo lado nacionalista, na Guerra Civil Espanhola, se denominavam "os Viriatos". Fosse por isso, ou por simples rebeldia fruto da época e da juventude, não descansámos enquanto não mandámos encosta a baixo o fraco arremedo do Viriato de cimento, que na queda se desfez em mil bocados...Aqui fica a confissão vandálica, tardia e certamente prescrita...

Depois disso poucas vezes tive ocasião de reencontrar o Eduardo, ainda que fosse acompanhando o seu percurso profissional à distância. Trabalhou a nível autárquico na sua Beira natal para onde se mudara cedo e, entre 1988 e 1996 foi director do parque Natural da Serra da Estrela, naquela que terá sido certamente a função que, pelo menos afectivamente, mais próxima terá estado do seu ideal de serviço público. Na mesma época, eu assumira entretanto as funções de Director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul, com sede em Évora. Abandonou as funções no Parque Natural no ano em que Joaquim Marques Ferreira, o Director Geral do ICN que o nomeara, deixou aquele Instituto para assumir o papel de responsável pelo ambiente no projecto Alqueva, precisamente no ano em que eu próprio entrei para a EDIA onde foi o meu chefe directo. Falávamos por vezes no amigo comum por quem Marques Ferreira nutria evidente simpatia e respeito profissional. Ainda na EDIA, tive o prazer de trabalhar no "master-plan" da zona da Barragem do Alqueva, com o Eng. João Caldeira Cabral, familiar muito próximo do Eduardo Osório, que me deu notícias dos seus novos interesses pela cultura, história e genealogia beirã, que se traduziriam em monumental obra "Raízes da Beira", editada em 2006. Infelizmente, a doença bateu-lhe precocemente à porta acabando o Eduardo por falecer em 2011 e, embora através de amigos comuns tivesse tido conhecimento da sua difícil situação, faltou-me a coragem para um reencontro cuja ausência ainda hoje me penaliza. Outras imagens irão certamente esfumando-se, mas enquanto por cá andar e a memória não me atraiçoar, fica para sempre na minha lembrança o Eduardo a acordar-me para essa madrugada única e irrepetível.

Passeio à Serra da Arrábida, talvez em 1972. O Eduardo Osório, à viola acompanhado pelo Mário Madeira e pelo Luis Vaz (este, também já falecido)

O Eduardo, sempre à viola (já que não era possível levar o piano, que também "arranhava") e parte do grupo da Amadora
Em Gouveia, na terra natal do Eduardo Osório, aqui de barrete (1973?)


Próximo de Nespereira, Gouveia (1973?)

Eduardo Osório Gonçalves, em 2006 no lançamento da sua obra "Raízes da Beira" (imagem recolhida em http://seiaportugal.blogspot.pt/2011/02/faleceu-eduardo-osorio.html)


O "nosso grupo" actuando julgo que na Voz do Operário, provavelmente em 1974 mas, obviamente, já depois do 25 de Abril (o palco está decorado com bandeiras dos movimentos de libertação das colónias portuguesas...). Esta "formação "ad-hoc", derivada quase em directo do grupo coral da Igreja da Amadora, chegou a actuar num espectáculo de "Canto-livre", realizado numa sociedade recreativa do Barreiro, em conjunto com artistas bem conhecidos, nomeadamente o Fernando Tordo e o poeta José Carlos Ari dos Santos, com quem partilhamos os "bastidores"... O Eduardo está ao centro, à guitarra e de camisola amarela. (Foto acrescentada a este post em 10 de Maio de 2016)

Outra foto do mesmo concerto. O cartaz deve ter a palavra de ordem "Solidariedade com os povos das colónias"

Sem comentários:

Enviar um comentário