quarta-feira, 8 de junho de 2016

Regresso ao Senhor da Boa Morte 
As sepulturas escavadas na rocha do Senhor da Boa Morte

Em passagem recente por Vila Franca de Xira, a caminho de Santarém mas com algum tempo de sobra (o que cada vez parece mais raro) vislumbrei no alto da colina sobranceira, a enigmática cúpula branca da Igreja do Senhor da Boa Morte. Memórias com cerca de três décadas foram suficientemente fortes para obrigarem ao desvio em direção a Povos, uma histórica aldeia ribeirinha, encalhada desde os anos 60 do século XX, pela construção da auto-estrada e hoje praticamente esmagada pelos bairros que, mesmo em condições topográficas adversas, por ali foram crescendo nas últimas décadas. 

Lembrei então as aventuras arqueológicas por estas bandas do antigo Departamento de Arqueologia do IPPC, quando o meu colega Rui Parreira, no início dos anos 80, com a sua proverbial capacidade operacional, veio a Povos (já então escondida e esquecida por causa da A1) dar conta do aparecimento de restos de ânforas e ossadas humanas numa vala para instalação de um poste de eletricidade junto a uma antiga escola primária republicana. Penso que já nessa altura, em que de arqueologia preventiva não se falava, que a notícia terá chegado a Lisboa (a sede do Departamento era então no próprio Museu Nacional de Arqueologia), por via da Clara Camacho, então às voltas com a instalação de um Museu de Arqueologia em Vila Franca de Xira. (Para quem não saiba, a Clara Camacho viria bastante mais tarde a ser a grande impulsionadora da Rede Portuguesa de Museus, estrutura que coordenou entre 2000 e 2005). 

Dando-se conta que os achados de Povos estavam relacionados com uma antiga igreja que existira no local e que, num raro acto de anticlericalismo levado às últimas consequências em Portugal, os republicanos de Povos haviam demolido para no seu lugar construir a escola, o Rui Parreira acabaria por realizar aí várias sondagens (entre 1984 e 1986), confirmando a utilização do local como cemitério cristão que, por sua vez se sobrepunha a restos de uma ocupação romana, que está hoje caracterizada como de uma possível villa. 

Decorreu certamente dessa intervenção, o nosso relacionamento com o Santuário vizinho do Alto do Senhor da Boa Morte, onde havia referencias a sepulturas medievais escavadas na rocha e que acabaria por ser devidamente registado no primeiro volume (Lisboa e Arredores) dos Roteiros da Arqueologia Portuguesa que o Departamento de Arqueologia editou em 1986. Ainda que a velha aldeia de Povos esteja hoje praticamente irreconhecível, à medida que subo à colina para revisitar o local, a paisagem vai-se tornando familiar e acabo por recuar no tempo três décadas ao contemplar, frente à Igreja, o conjunto rochoso onde se abrem as antigas sepulturas. Infelizmente nenhuma informação enquadra estas invulgares estruturas que acabam por passar despercebidas ou não ter qualquer significado para os visitantes ocasionais. E afinal já aqui foi investido bastante trabalho e estudo, certamente com investimento de recursos públicos, como a consulta à base de dados do ENDOVÉLICO vem rapidamente demonstrar. 

A ficha sobre o Senhor da Boa Morte, publicada em 1986 nos Roteiros da Arqueologia Portuguesa, v.1


Entre 1991 e 1995 o sítio foi estudado e escavado na sua envolvente comprovando uma ocupação islâmica, pela Ana Cristina Calais,  antiga colaboradora do Serviço Regional de Arqueologia do Sul (escavou na Rua de Burgos com a Ana Gonçalves e na Flor da Rosa com a Teresa Matos Fernandes, por exemplo) e actualmente responsável pelo Museu de Coruche. Por volta do ano 2000, trabalhos de conservação na Igreja do Senhor da Boa Morte implicaram a realização de escavações no interior da Igreja dirigidas por Maria Pilar Reis, com resultados interessantíssimos. Cito o ENDOVÉLICO: Através da intervenção arqueológica foi possível detectar: 4 silos de cronologia islâmica; poço de fundição do sino de igreja e fragmentos de molde de sino, estrutura datada do século XIII, necrópole cristã existente no interior da nave em utilização entre o século XIII-XV/XVI. Obtiveram-se resultados que permitem delinear várias fases de reconstrução do templo e em parte caracterizar o programa decorativo de algumas dessas intervenções. Permitiu ainda relacionar os resultados obtidos com os resultantes das intervenções arqueológicas na plataforma superior do monte (fortaleza islâmica) e a necrópole.

A igreja restaurada do Senhor da Boa Morte



As surpresas no que respeita a conexões pessoais e profissionais com estes sítios, não se ficam porém por aqui, já que estes lugares arqueológicos acabam citados num Projecto de Inventário Arqueológico de Vila Franca de Xira, datado de 2006, da responsabilidade de Sandra Brazuna, uma arqueóloga que comigo trabalhou no Alqueva. Formando equipa com a Sofia de Melo Gomes e a Marta Macedo, a Sandra foi responsável pelo estudo da ocupação romana na margem direita do Guadiana, entre a velha ponte de Mourão (onde escavaram um grande “casal romano” e a a ponte histórica da Ajuda. 

Há assim lugares a que, pelos acasos da vida, nunca mais voltámos e que afinal estão ainda tão presentes...De Povos, recordo ainda o dia em que o Rui Parreira ali em escavação, me telefonou deveras preocupado. Entre os enterramentos relacionados com a demolida igreja matriz, detectara um esqueleto de criança, cujo contexto estratigráfico e deposicional se diferenciava do restante conjunto. Mais ainda: alguns elementos relacionados com o vestuário ou a mortalha, apontavam para uma data de enterramento bastante recente. E assim, desta vez não foram as autoridades policiais que chamaram os arqueólogos (como me aconteceu há muitos anos no Alentejo) mas os arqueólogos que acabaram por chamar as autoridades policiais as quais, ainda que sem deslindarem o mistério, confirmaram a existência de fortes indícios de crime. Mas há 30 anos ainda não havia os CSI...

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