segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Museu D.Diogo de Sousa, tributo de uma geração



Sem nunca ter premeditado nessa hipótese (mesmo depois de ter decidido frequentar a licenciatura de História) acabei por me tornar arqueólogo graças à oportuna influencia de alguns colegas de curso que, desde "sempre", não se imaginavam a fazer outra coisa, e tal circunstancia acabou por me envolver, geracionalmente, como testemunha ocasional num extraordinário processo de transformação desta disciplina em Portugal. Uma experiência de vida que não trocaria de animo leve e da qual vou procurando registar alguns testemunhos pessoais neste "blog memorialista".

Obviamente, a geração de arqueólogos que frequentou a Faculdade ao longo dos anos 70, beneficiou antes de mais das "portas que Abril abriu" em 1974... e, naturalmente, do caminho percorrido, com imensas dificuldades, pelos (poucos) arqueólogos que já estavam no "terreno" desde os anos 60. Mas nestes últimos 40 anos que contributos a Arqueologia portuguesa legou à sociedade que, de uma maneira ou de outra, financiou esta actividade, muitas vezes considerada um exercício diletante para gozo dos próprios intervenientes? Trata-se de um balanço complexo e certamente sujeito a tantos pontos de vista quantos os avaliadores...

Vieram estas reflexões a propósito de dois factos recentes. Um público -a passagem dos vinte anos da criação do Parque Arqueológico do Côa- e um privado, a minha primeira visita ao Museu D.Diogo de Sousa. Em ambos os exemplos, por razões que justificarei, considero estarmos perante dois casos (infelizmente raros nestas quatro décadas apesar do grande desenvolvimento da actividade arqueológica) em que a geração a que me sinto ligado, conseguiu levar a prática social da Arqueologia, ao seu patamar mais elevado, transformando o saber acumulado por anos e anos de trabalho árduo de estudo, em campo ou gabinete, em "estruturas materiais" de conservação, consolidação e difusão desse saber que, por enquanto, têm o seu instrumento mais eficaz e perene naquilo que chamamos de MUSEU. Se as ruínas de Conimbriga têm hoje uma importância cultural e social de excepção, isso deve-se antes de mais à criação do seu Museu Monográfico, o maior legado social da geração que nos precedeu e que teve em Bairrão Oleiro, Jorge e Adília Alarcão, os seus principais mentores. Já no caso do Côa, ainda que a investigação massiva ali conduzida ainda nos anos 90 tenha sido essencial ao reconhecimento científico do vale ameaçado pela Barragem e ainda que a criação do Parque Arqueológico há 20 anos tenha certamente tido um papel importante na divulgação da respectiva Arte Rupestre (com o seu milhão de visitantes!), considero que a pedra de toque que garante para o futuro a preservação e difusão deste importante património, foi a construção e inauguração do respectivo Museu (2010), após um processo longo e atribulado iniciado ainda nos tempos do IPA e concluído já na fase IGESPAR.

Mas é o caso de Braga e do seu Museu Arqueológico D.Diogo de Sousa que está verdadeiramente na origem desta reflexão pessoal sobre o "legado" que a geração a que pertenço (e que começa a retirar-se de cena), deixará à sociedade portuguesa.

De facto, se quisermos encontrar um lugar e um projecto onde a tal transformarão da Arqueologia se iniciou, ele é certamente Braga e oprojecto de Salvamento de Bracara Augusta. Obviamente que há outros antecedentes, mas é ali que tudo se parece cruzar em meados da década de 70. Sob a direção de arqueólogos formados na ou sob a influencia da "escola" de Conimbriga, para "salvar" as ruínas romanas de Braga, ameaçadas pela explosão urbanística, para ali convergem os jovens de Lisboa, que tinham feito o tirocínio na pré-história do Tejo, bem como os alunos do Porto, graças à dinâmica universitária ali introduzida por novos professores universitários. O Campo Arqueológico de Braga não é a primeira experiência de arqueologia urbana em Portugal, mas sem dúvida, é a primeira que pela dimensão e organização da sua equipa técnica e pela continuidade do projecto, se pode considerar como um projecto verdadeiramente profissional. Não foi por acaso que, vários dos meus colegas, (dos tais que não se imaginavam a fazer outra coisa), acabaram a escavar "romano" em Braga, pese embora o seu interesse por períodos ou épocas bem mais recuadas. Era isso, ou ir dar aulas para o Liceu, opção que vingou no meu caso, pelo menos nos primeiros tempos.

Assim, quando em 1980 o Secretário de Estado do Cultura de Sá Carneiro, Vasco Pulido Valente (esse mesmo historiador que ainda hoje escreve no Público) percebeu que era urgente  uma "mudança" significativa na gestão da Arqueologia portuguesa (a começar pelo Museu Nacional de Arqueologia, paralisado por graves problemas internos), foi em Braga e no seu "campo arqueológico" que (julgo que por sugestão de Natália Correia Guedes, a primeira presidente do IPPC, eventualmente com o apoio de Adília Alarcão) procurou respostas imediatas. Na sequencia do IV Congresso Nacional de Arqueologia realizado em Faro em Maio desse ano, Francisco Alves é convidado para director do MNA, acumulando com a direcção do novo Departamento de Arqueologia do IPPC ainda em instalação. Francisco Alves aceita mas coloca condições. Haveria que consolidar o modelo de Braga e replicá-lo no Centro e no Sul através da criação de estruturas regionais de arqueologia (os Serviços Regionais de Arqueologia). Mas para isso precisava de arqueólogos, abrindo as portas aos que, como eu, tinham optado pela segurança do Ensino Secundário. A década de oitenta vê finalmente nascer um conjunto de estruturas arqueológicas que, de algum modo, ainda hoje, apesar das sucessivas reformas, se reconhecem no contexto da estrutura administrativa do património cultural. Mas, porventura, foi em Braga, onde o processo se iniciara, que os resultados viriam a ser mais sólidos, graças em grande parte à concretização do projecto do Museu D.Diogo de Sousa. Este, apesar dos seus antecedentes que remontam ao século XVI (ver aqui), como nos recorda Eduardo Pires Oliveira, renasce "legalmente" por proposta de Jorge Alarcão em 1979, precisamente para permitir o enquadramento do pessoal técnico envolvido nas escavações de Braga e o estudo e armazenamento dos respectivos espólios. Da respectiva comissão instaladora, constavam nomes como o de Maria Emília Amaral Teixeira, Adília Alarcão, Francisco Alvese e J.Rigaud de Sousa a que se associaram mais tarde Manuela Delgada ou Francisco Sande Lemos. Mas a vida da nova instituição estava longe de ser fácil. Recordo que no início dos anos 80, partilhavam as mesmas acanhadas instalações provisórias da Avenida Central de Braga, o Museu D.Diogo de Sousa, o Serviço Regional de Arqueologia do Norte, ambos dependentes da SEC, e ainda a Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, a entidade responsável pelas escavações de Braga e que, pela antiguidade e pelos meios permanentes que a Universidade proporcionava, garantia a sustentabilidade de todas aquelas estruturas. Mas ao contrário do que viria a suceder em Coimbra ou em Évora, em que os respectivos Serviços Regionais de Arqueologia (tão activos nos anos 80) acabariam por desaparecer, absorvidos por estruturas administrativas cada vez menos operacionais, sem deixar resultados sociais muito concretos (espólios e documentação dispersas, sítios e monumentos arqueológicos entregues à gestão de terceiros ou estiolados, por falta de continuidade da investigação), em Braga algo ficou e se mantem vivo, pesem embora as actuais dificuldades.

O Museu D.Diogo de Sousa, parece um projecto conduzido ao contrário mas talvez seja aí que se encontre a razão da qualidade do produto final. Começou por ser apenas uma idéia, ainda que respondendo a uma necessidade concreta: dar guarida aos espólios de Braga e da região envolvente que resultavam da efervescente actividade arqueológica que marcou essa região no final dos anos 70 e a década de 80 (graças também á explosão universitária do Porto). Começou por ser um Museu sem instalações e sem quadro de pessoal, mas que congregava à volta de um projecto (o salvamento de Bracara Augusta e o enquadramento da arqueologia do Noroeste) dezenas de entusiastas, pagos umas vezes pela Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, outras pelo Serviço Regional de Arqueologia do Norte, outras pelo próprio Departamento de Arqueologia, através dos "subsídios" às escavações. Acabaria por ser um projecto museológico em construção ao longo de um quarto de Século, beneficiando de largas e prolongadas escavações no seu futuro espaço de instalação, de uma equipa projectista dedicadíssima, (Arquitectos Carlos Guimarães e Luis Soares Carvalho)e herdando e integrando o pessoal técnico das restantes estruturas associadas, à medida que estas se iam desintegrando...

Acompanhei de muito perto esse processo ao longo da década de 80 e nessa altura estive várias vezes em Braga em serviço, numa época em que o espaço do futuro Museu era ainda e apenas um imenso estaleiro arqueológico. As obras de concretização do excelente projecto  seriam faseadas e prolongar-se-iam de tal maneira no tempo que o Museu só abriria as portas em 2007, quase três décadas após a sua criação legal... Mas, por aquilo que finalmente tive oportunidade de ver, acompanhado pela minha amiga Isabel Silva (uma pioneira das equipas de Braga) e sua directora, acho que aqui se cumpriu o legado de uma geração. E não apenas pela majestade e qualidade arquitectónica do edifício e da sua envolvente (um Museu tem de ser, deve ser mais do que isso) mas sobretudo pela riqueza e importância das colecções arqueológicas aqui armazenadas, conservadas e expostas. O que é fantástico, quando percebemos que todas essas colecções (com poucas excepções) são resultado da actividade arqueológica na região no pós 25 de Abril. Mas, infelizmente, apesar da qualidade  do Museu, as dificuldades comuns à generalidade das instituições da Cultura (independentemente de dependerem da DGPC ou das Direcções Regionais de Cultura, o caso do D.Diogo de Sousa) também aqui estão bem presentes. O pessoal é escasso e equipa técnica, um dos grandes trunfos do Museu, nomeadamente ao nível da conservação e restauro, está envelhecida e não há renovação à vista. A manutenção dos equipamentos e do edifício está reduzida ao mínimo por dificuldades financeiras, ainda que o estado geral não o pareça ainda denunciar, pela qualidade do projecto e da obra. Aliás, e essa será a grande vantagem dos Museus relativamente a outras instituições de cultura, mais facilmente descartáveis com todos os prejuízos que isso acarreta, a sua função, pesem embora as dificuldades conjunturais do momento, é preservarem a memória através da conservação dos testemunhos materiais entregues à sua guarda. E o Museu D.Diogo de Sousa, legado de uma geração, aí está para durar, tanto quanto a sua vizinha Sé de Braga!





A galeria de acesso à exposição permanente. Onde se conta a história do Museu

Um detalhe da "história" do Museu: Uma imagem já clássica das escavações de Bracara Augusta (num folheto editado em 1980)

Alguns "miliários" romanos que conjuntamente com algumas inscrições constituíam o "espólio" fundacional do Museu.




Alguns dos valiosos materiais arqueológicos presentes na exposição permanente do Museu, resultantes da pujante actividade arqueológica verificada no NO de Portugal nas últimas décadas do século passado.


O "mosaico " conservado "in situ" como testemunho dos vestígios arqueológicos escavados no âmbito do processo de construção do Museu. 




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