sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Da paternidade da Arqueologia Subaquática portuguesa




Seguindo oportunas sugestões divulgadas nas redes sociais, comprei a recente edição da VISÃO HISTÓRIA, (A grande aventura dos mares/ Naufrágios e Tesouros/ A evolução do mergulho e da arqueologia subaquática). Sabendo de antemão que por detrás da iniciativa estava o Alexandre Monteiro, tinha a garantia de dinheiro bem empregue e de leitura agradável para dois ou três serões. E não me enganei. Ainda não tive oportunidade de a ler na íntegra, mas o que vi até agora agradou-me sobremaneira, até porque o Alexandre Monteiro e os restantes co-autores, com destaque para o Filipe Castro, conseguem aquilo que, raramente vemos nos colegas arqueólogos "terráqueos". Conjugar o rigor com a actualidade dos dados e sua interpretação, sem excesso de jargão disciplinar, com um discurso de divulgação apelativo, capaz de cativar os leigos na matéria. Aconselha-se portanto a leitura, até porque este trabalho, nos dá uma perspectiva da época dos descobrimentos e do próprio país, tão surpreendente como inesperada, até para alguém como é o meu caso, que vem da área da História.

Acresce como mais valia a esta edição, na minha modesta e suspeita opinião, o reconhecimento do papel de FRANCISCO ALVES, (justamente apelidado de "pai da arqueologia subaquática em Portugal") na introdução, estruturação e desenvolvimento desta disciplina no nosso país. De facto havia estranhado o aparente "branqueamento" do seu papel na grande exposição do MNA sobre a Arqueologia subaquática em Portugal (O Tempo resgatado aos Mares), que revi muito recentemente no Museu Municipal de Viana do Castelo, onde ainda se encontra exposta. Segundo me explicaram, tal circunstância decorreu de exigência do próprio que, não concordando com alguns critérios seguidos, não quis o seu nome associado ao projecto ou ao respectivo catálogo. Desconheço os contornos da questão mas tendo trabalhado quase uma década com o Francisco, não me surpreende a justificação...

A exposição "O tempo resgatado ao mar", este Verão em Viana do Castelo
Detalhe da exposição no Museu Municipal de Viana do Castelo
Polémicas ou questiúnculas à parte, o nome do Francisco Alves, fica indelevelmente associado às transformações da arqueologia portuguesa (no seu todo e não apenas à subaquática) nas duas últimas décadas do século passado. Com um temperamento aventureiro mas carismático, que tantos dissabores lhe traria também, era sobretudo um construtor de projectos, capaz de congregar equipas de trabalho a quem sabia transmitir entusiasmo e dar objectivos. Não surgiu por acaso em 1980 à frente do Museu Nacional de Arqueologia, então a atravessar profunda e prolongada crise. Em quatro anos montara em Braga, em contexto pouco favorável, uma estrutura profissional inédita na paroquial arqueologia da época (Campo Arqueológico de Bracara Augusta), estrutura que nasceu para "salvar os vestígios romanos de Braga", ameaçados pelo urbanismo selvagem, mas que ainda hoje, quarenta anos passados, é o esqueleto da salvaguarda e investigação arqueológica naquela cidade.   ver a este propósito ou também aqui  Aliás seria com base nessa experiência que, confrontado por Vasco Pulido Valente, Secretário de Estado da Cultura de Sá Carneiro, imporia como condição para aceitar vir para a direcção do MNA, "carta branca" para a contratação (ainda que por destacamento do ensino secundário) de uma equipa de arqueólogos para consigo trabalharem.

O Primeiro-ministro Sá Carneiro chega ao MNA em 28 de Novembro de 1980 (cinco dias antes do desastre aéreo que o vitimou a 4 de Dezembro) onde é recebido pelo Director Francisco Alves, para a inauguração da Exposição "Tesouros da Arqueologia Portuguesa". Esta exposição, permitindo a reabertura do MNA em plena campanha eleitoral, era um dos compromissos de Francisco Alves e restante equipa para com o SEC Vasco Pulido Valente
Foi por essa via que toda uma "geração de jovens arqueólogos" (entre os quais me conto e que até então nunca ouvira falar do Francisco Alves) seria chamada à profissionalização até aí inexistente. No MNA, no novo Departamento de Arqueologia do IPPC e nos Serviços Regionais de Arqueologia (Norte, Centro e Sul), estes criados quase à imagem do Campo Arqueológico de Bracara Augusta. Aliás, no Norte, o Campo Arqueológico bracarense, sob a direção do Francisco Sande Lemos, serviria de incubadora do próprio Serviço Regional. Mas seria como director do MNA e do Departamento de Arqueologia do IPPC que finalmente Francisco Alves encontraria as condições para dar largas à sua paixão pelo mar (nascida na sua juventude em Algés) e pelos seus segredos arqueológicos. Sem prejudicar a reestruturação e reorganização do Museu, impostas pelo exigente "caderno de encargos" de Pulido Valente, o MNA serviria de estrutura de apoio técnico e logístico aos projectos que cedo inicia neste campo, nomeadamente o estudo do navio francês "L'Ocean", afundado perto da Boca do Rio, na costa algarvia. Fácil será calcular o grau de imaginação e improvisação que caracterizaram estas primeiras acções de "mar", em particular ao nível dos meios técnico-logísticos, mas que o Francisco sempre ultrapassava com desenvoltura, por vezes excessiva, e entusiasmo contagiante. Começa então a contar com algumas colaborações importantes e contribui para a formação prática dos primeiros arqueólogos com capacidades subaquáticas (ver a propósito aqui) num processo que não foi fácil nem linear. Já ao nível do Departamento de Arqueologia do IPPC, que eu passaria a liderar formalmente apenas em 1984 (embora na prática o Francisco há muito delegasse em mim a respectiva gestão corrente) a intervenção era de outro tipo. Por um lado de apoio financeiro, fazendo encaminhar para a Arqueologia Subaquática uma parte do bolo geral das verbas anuais da Arqueologia. Por outro, procurando o enquadramento jurídico-institucional de uma actividade que  estava então a dar os primeiros passos em Portugal. Tendo participado (sempre com os pés em terra firme) neste processo emergente, é pois com agrado e até algum espanto que dou conta, ao ler as páginas desta VISÃO-HISTÓRIA, do extraordinário caminho andado desde então. Mas numa altura em que se fala tanto de António Guterres (a propósito da sua eleição para Secretário Geral da ONU) importa recordar que o salto qualitativo aconteceu em 1996/97 com a criação pelo seu governo do IPA (Instituto Português de Arqueologia) e do respectivo Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática, como corolário de todo o processo do Côa. Francisco Alves deixara já a direcção do MNA e dedica-se finalmente ao seu velho sonho de construção de uma estrutura pública inteiramente dedicada à Arqueologia Subaquática. O CNANS instala-se então nas antigas Oficinas Gerais de Material de Engenharia, a Belém, tirando partido das suas características técnico-logísticas para a instalação de um grande laboratório de conservação, incluindo os grandes tanques necessários ao tratamento das peças recolhidas no fundo do mar.
(ver aqui: http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/05/coches-e-arqueologos-seis-anos-depois.html).
O fim precoce do IPA, traçado desde o governo de Barroso e concretizado em 2007 pelo PRACE de Sócrates, arrastaria consigo a extinção do CNANS. Num primeiro momento assiste-se à sua extinção administrativa e, posteriormente, com o projecto do novo Museu dos Coches (o tal projecto cultural decidido pelo Ministério da Economia...) concretiza-se o seu desmantelamento físico. Quando no sentido testemunho que fecha esta excelente revista (e que tomei a liberdade de aqui reproduzir em facsimile), Francisco Alves denuncia a "demissão do Estado na tutela do património subaquático", ainda que não esqueça muitos outros problemas, é ao desmantelamento do (seu) laboratório, que se está a referir em particular.

Não me cruzo com o Francisco praticamente desde que, amargurado com todas estas tristes circunstancias, se aposentou já há alguns anos e a última vez que falámos foi ao telefone. Pedia-me então que lhe confirmasse algumas datas e factos pois andava a escrever as suas memórias profissionais. Oxalá a mão não lhe trema e cumpra mais esse projecto, pois o seu testemunho vai ser essencial para a história da arqueologia portuguesa entre 1974 e 2007, na terra e no mar.


As instalações do IPA e do CNANS em Belém, já com a "morte anunciada", pelo Ministério da Economia...






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