quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017


A “minha” Guerra Colonial



Este é sobretudo um blog de memórias profissionais, no entanto, de quando em vez, alguns temas mais pessoais também têm aqui sido aflorados, já que a vida é um contínuo, e nem sempre é fácil segmentar a realidade...

Afinal, também faço parte da última geração que viveu a juventude sob a ameaça de “mobilização” para a última guerra colonial do Século XX. Ameaça felizmente não concretizada no meu caso, graças ao “adiamento do serviço militar por motivos universitários” (uma “benesse” calculista do fascismo que tantas vezes serviu também de meio de chantagem sobre os mais contestatários). "Dado o nome" aos 18 anos", fui às "sortes" aos 20, em 1972 (na enfermaria da Academia Militar, na Amadora) tendo sido considerado apto para todo o serviço. Apanhado pelo 25 Abril ainda na Faculdade, tal circunstancia feliz não me livrou, no entanto, do serviço militar obrigatório que já recordei neste “blog”( 1978-Missão em Tróia ), serviço obviamente sem a duração e, sobretudo, sem os inevitáveis traumas físicos ou psíquicos da “guerra”.

Este assunto veio recentemente à baila ao reencontrar entre os meus papéis antigos, algumas dezenas de cartas e aerogramas de diferentes colegas que afinal, apesar da idade comum, não tiveram a mesma sorte, por um ou outro motivo. É verdade que alguns desses meus contemporâneos, estiveram nas colónias já na fase de “desmobilização” pós-25 de Abril, apesar de tudo uma situação diferente, porque apesar dos riscos, tinha um objectivo e um propósito concreto e de curto prazo. Mas alguns amigos bem próximos, nomeadamente ex-colegas de turma do seminário de Almada, ainda suportaram“comissões” em cenário de guerra, nalguns casos em situações quase extremas. É sobretudo destes que guardo alguns testemunhos escritos especialmente emotivos, pois produzidos na pressão dos acontecimentos.

Mas as minhas memórias da “Guerra Colonial”, vêm de muitos anos antes e vão mesmo até à chamada invasão de Goa, Damão e Diu de 1961. Andava na escola primária (3ª Classe?) mas retenho lembrança ainda que vaga da alteração à programação da Emissora Nacional, ouvida no pequeno rádio Philips, o único luxo da nossa casa da Vila Fernandes, em Moscavide. A par da inevitável música fúnebre, as horas eram marcadas por gravações de sinos a repicar, “os sinos da Velha Goa que choravam por Portugal”, segundo a voz dramática do locutor de serviço!  (A propósito desta "invasão", guardo outro facto ainda que impreciso. Um colega meu de carteira, no primeiro ano do Seminário de Santarém, (algures entre 1962 e 63) o "António Carlos Froufe", de quem nunca tive mais notícias porque saíu logo ao 2º ou 3º ano, falava de um irmão marinheiro, desaparecido nessa "guerra". Consultando na NET a lista das cerca de 30 vítimas mortais de 61, não aparece qualquer apelido "Froufe", mas é provável que ele estivesse então ainda entre os 3 000 prisioneiros portugueses.)

Nesse início dos anos 60, apesar da recente aparição da Televisão em Portugal, (que eu apenas via no Café Mimoso, já na curva da estrada para Sacavém) estávamos claramente ainda no tempo da “rádio” e comecei a aperceber-me que algo de grave se passava lá longe em Angola (que eu conhecia dos mapas da escola primária), porque o meu pai ouvia religiosamente ao fim do dia na emissora nacional, apesar das péssimas condições de transmissão, a “Crónica de Angola”,(“Aqui Luanda, fala Ferreira da Costa")


A situação, no entanto, foi-se tornando um pouco mais nítida para mim, não só porque o entendimento aumentava com a idade, mas sobretudo porque depressa a guerra nos bateu à porta com a mobilização do meu Tio João, o irmão mais novo da minha mãe e a cujo embarque para Angola me levaram. Não sei o que me terá marcado mais, se as cenas lancinantes de um cais de Alcântara que só consigo recordar a preto e branco, se a tensão permanente que se passou a viver lá em casa, numa espécie de luto atípico, entrecortado pelos rosários diários da minha mãe, à luz da lamparina ao "Sagrado Coração de Maria". Até que um dia, muitos “aerogramas depois” e umas quantas fotos descontraídas de um tio de calções, tão escuro que já ninguém reconhecia, este voltou são e salvo e a vida pareceu regressar à normalidade. Só que já não era possível ignorar a guerra que parecia não ter fim à vista e que se multiplicava por várias frentes. Um sobrinho do meu pai, filho do Tio Ricardo, seria uma das primeiras baixas mortais da minha aldeia, se bem que não a última. O velho cemitério do Carvalhal da Aroeira, como todos os cemitérios deste país, por via das omnipresentes  lápides, à época a única fuga à censura, foram e são ainda hoje a testemunha material silenciosa dessa imensa sangria. Lá está também no cemitério da aldeia, a campa de um jovem vizinho da minha avó materna, em cuja casa passei tantos verões. Era uns anos mais velho do que eu, chamava-se também António Carlos (é bem possível que a minha mãe nele tivesse inspirado na hora de me baptizar) e aturou muitas brincadeiras ao puto “lisboeta”, neto da vizinha. Aos vinte anos, filho único, ficou numa das frentes dessa guerra inútil, deixando os pais destroçados.


Depois, as lembranças desta longa guerra, confundem-se com a inexorabilidade do calendário. Hoje julgo que a principal razão do apoio incondicional da minha mãe à minha frequência do seminário (1962 a 68), mais do que decorrente de qualquer motivação religiosa, resultaria da perspectiva de tal me poder livrar da “guerra”... E de facto, com o passar dos anos e tendo presente a experiência da mobilização do irmão, era-me difícil imaginar como seria para ela a repetição de tudo, com o próprio filho… E em quantas famílias isso aconteceu? Daí que, apesar do espírito nacionalista, conservador e religioso dominante nos meios em que crescia, a “guerra” e as suas consequências rapidamente começaram também a ter efeitos colaterais. 

Muito antes da tomada de uma consciência política mais abrangente, que de facto apenas se concretizaria com a entrada na Universidade, a ameaça permanente da guerra colonial, mostrara-me desde bem cedo que algo de muito errado se passava na sociedade portuguesa e que, obviamente, tinha razões profundas. Por estranho que isso hoje possa parecer, essa consciencialização viria a dar-se ainda no próprio Seminário, particularmente em Almada, graças ao espírito renovador que soprara dos lados do Concílio Vaticano II. Foi na Quinda de São Paulo em Almada, por vezes com a participação do então ainda Padre Fanhais, que ouvi as primeiras canções do Adriano ou do Zeca Afonso ou a poesia contestatária do Manuel Alegre, de que viria a ser "grande" divulgador nas campanhas arqueológicas do Ródão, a partir de 1971.( ver post sobre o Alegre do Ródão)

Quando em 1973, acabado o 3º ano da Faculdade, já com 21 anos de idade, ousei pedir uma “licença militar” (ali no DRM da Av. de Berna, onde hoje é a Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nova) a fim de poder viajar até França, para estagiar no “chantier-école” de Pincevent, dirigido pelo grande mestre André Leroi-Gourhan, confesso que tive algum receio que a mesma fosse negada. Até porque, alguns anos antes, apesar da responsabilização pessoal do então Padre João Bragança junto do pide de serviço na fronteira de Valença, este impedira a minha saída e a do meu amigo Vasco Pegado, para uma breve visita de ida e volta a Vigo, "porque tínhamos mais de 18 anos". O meu “bom comportamento” (quer dizer, ausência de referencias na PIDE) facilitou, no entanto, a licença para a minha primeira viagem ao estrangeiro e, recordo, apesar de toda a consciência política que três anos de Faculdade me haviam dado, a emoção com que comprei as primeiras revistas (Le Nouvel Observateur) e jornais franceses (Le Monde) e de procurar avidamente, notícias sem censura sobre a “guerra colonial”, aliás as únicas notícias que então apareciam sobre Portugal na imprensa internacional. Dessa primeira viagem fica também a memória da hipótese de deserção que começava a germinar. Em Paris convivi com alguns familiares que ali viviam há alguns anos, depois de terem dado o “salto” em Vilar Formoso. Não os movera qualquer motivação política, nem sequer fugiam da guerra. Escapavam à miséria e à exploração do campo sem perspectivas mas acabaram por juntar ao “pacote”, a falta de comparencia à “mobilização” para uma guerra que nada lhes dizia. O seu exemplo (e até o eventual apoio logístico) abria-me uma alternativa que poderia ter mudado toda a minha vida. Mas o interesse em acabar o curso e alguma garantia de adiamento até lá, davam folga a uma decisão que sabia seria sempre dramática em termos familiares. 

O golpe militar do 25 de Abril, logo no ano seguinte, viria finalmente alterar tudo. Quando nesse mesmo ano de 74, menos de três meses após a "revolução dos cravos", tive oportunidade de regressar a França para participar em novas escavações, agora nos Pirinéus, era já todo um outro espírito que me animava, conquistadas as liberdades que um ano antes pareciam tão distantes e afastado o espectro de uma guerra que não era minha. Por isso me soou anacrónica a compreensível reacção do casal de idosos franceses que comigo se cruzaram no comboio noturno entre Bordeus e Toulouse. Ao saberem que eu era português, acabado de chegar da “revolução”, tomaram-me por um jovem refugiado e assumiram uma atitude protecionista que contrastava com a euforia da liberdade reencontrada que eu julgava transmitir mas que eles não entendiam.

Esta guerra e sobretudo as suas terríveis consequencias, desgraçadamente não desapareceram como por encanto com o 25 de Abril. Nalguns casos, com novos contendores e diferentes contornos, assumiria mesmo formas bem mais violentas, ainda que cada vez mais distantes dos nossos lares. Mas para a minha mãe como para tantas outras mães, mesmo não compreendendo todo o alcance das transformações que a liberdade trouxera, o 25 de Abril "pelo menos" valeu para uma coisa. Acabou com a "Guerra"!

"Aerograma" recebido do meu amigo Luis Vaz, já falecido, enviado do Mindelo, Cabo Verde, em Agosto de 1974 (pelo que aparece já riscada a menção ao Movimento Nacional Feminino, a entidade que editava estes materiais, "para uso grátis das forças armadas em serviço no ultramar português"). 



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