quarta-feira, 22 de março de 2017


De Moscavide ao Ródão_ geografias da memória


Fachada da Igreja de Santo António de Moscavide, interior e exterior (fotos site do SNPC)































A propósito da recente passagem do 90º aniversário de Mestre Manuel Cargaleiro, Vitor Serrão, num dos seus extensos mas sempre oportunos e interessantíssimos textos com que de algum tempo a esta parte alimenta a sua página do Facebook (partilhando assim de forma generosa o seu hábito, desde os nossos tempos de faculdade, de registo em "diário" das suas múltiplas descobertas e reflexões...) referiu-se expressamente a uma das grandes obras, enquanto ceramista, daquele reputado artista : a fachada da igreja de Santo António de Moscavide. E aqui transcrevo o texto de Vítor Serrão:

PARABÉNS, MESTRE CARGALEIRO. O pintor e ceramista Manuel Cargaleiro comemorou esta semana que finda os 90 anos de existência e mais de 70 de actividade. Nascido em 1927 numa aldeiazinha tagana, Vale do Cobrão (Vila Velha de Ródão), é um dos nomes maiores da cerâmica portuguesa. Passam também sessenta anos sobre a execução do gigantesco painel cerâmico que recobre a fachada da igreja de Santo António em Moscavide, concebido em 1956, e que constitui uma das obras-primas do artista. O painel da matriz de Moscavide é um deslumbramento de sugestões tácteis e polícromas a envolver um espaço, todo um jogo de seduções cromáticas e luminosas, absolutamente original no contexto da sua época. Aliás, também a igreja, traçada em 1955 pelo arquitecto António Freitas Leal, se vinha integrar no quadro de renovação da arquitectura religiosa (de que são exemplos lisboetas as igrejas de Nossa Senhora de Fátima, de Pardal Monteiro, e de São João de Brito, em Lisboa, de Vasco de Morais Palmeiro). É o próprio Cargaleiro a afirmar a primazia da cerâmica na sua obra de pintor: «Comecei a minha vida de artista como ceramista e sou ceramista mesmo quando faço pintura a óleo. Não consigo imaginar uma coisa sem a outra. As minhas duas práticas, claro que se influenciam mutuamente. Não posso esquecer todos os meus conhecimentos sobre a história da faiança ou sobre a decoração mural quando pinto, assim como não esqueço a minha cultura pictórica quando crio em cerâmica. Está tudo muito ligado, e é isso que constitui a minha especificidade. Eu não copio os meus quadros nos azulejos: pinto diretamente sobre a faiança, sem desenho prévio, como numa tela»... Recordo, a propósito, os meus contactos com a obra do artista em Paris, nos anos setenta, as conversas frutuosas sobre arte portuguesa (e o azulejo), e a sua visita ao complexo de arte rupestre do vale do Tejo (Fratel, V,. Velha de Ródão) em 1972 ou 73, mostrando-se extasiado, junto dos jovens arqueólogos de que eu fazia parte, pelo poder criativo manifestado pelos artistas pré-históricos na sucessão de meandros, círculos, espirais e figuras incisas nas rochas das margens do Tejo. Via nesses seus antepassados artistas um idêntico fulgor na busca da criação aurática -- porque as obras de arte são trans-contextuais e assim enfrentam os tempos, com a sua carga de afectos incólume. Parabéns, mestre Cargaleiro, e votos de que continue a sua longa obra !

Que memórias me conseguiu afinal evocar este texto? Poderia desde logo começar pelo precoce reconhecimento da obra e das origens de Mestre Cargaleiro, personalidade com que nos fomos cruzando em Vila Velha de Ródão, sua terra natal. Não só nos "heróicos" anos setenta do "salvamento" da Arte Rupestre do Tejo ainda como estudantes (em que o Vítor também participou) mas também mais tarde, já nos anos oitenta, pela mão do Professor Baptista Martins, enquanto Presidente da Câmara Municipal ver aqui e que nessa qualidade tudo fez para promover a cultura na sua terra, cruzando iniciativas entre a arqueologia, a arte pré-histórica e a arte contemporânea, muitas vezes sob a presença tutelar, mesmo que à distância, da enorme figura de Cargaleiro. Mas, graças à escrita do Vítor, apercebi-me finalmente da especial ligação do Mestre ceramista a um edifício, a Igreja de Moscavide, a que tantas memórias de infância me ligam. Obra invulgar para a época, fugindo de modelos revivalistas tão comuns na construção religiosa sua contemporânea, vim assim a descobrir, que ela incluía também obras de grandes artistas contemporâneos, como as esculturas do Cristo e de Santo António de Mestre Lagoa Henriques (professor nas Belas Artes da Isabel, a minha mulher), para além da magnífica fachada de azulejos de Cargaleiro. ver texto neste site, donde retirei algumas das fotos aqui usadas Naturalmente obras de que retenho desde criança fortíssimas imagens, até pelo seu inusitado, mas cuja autoria desconhecia até hoje.

A Igreja de Moscavide na actualidade (foto do Site do SNPC)
O Santo António de Lagoa Henriques, que tantos comentários depreciativos provocava na maior parte dos paroquianos. (foto SNPC)
DE facto, as minhas mais remotas memórias, relacionam-se com a praça onde em 1956 se inaugurou esta Igreja e que eu recordo ainda sem a torre, construída mais tarde. Tinha entre 3 a 4 anos quando a minha família se mudou para Moscavide, pelo que as recordações da aldeia próxima de Torres Novas onde nasci ( Carvalhal da Aroeira ), são meros "flashes" que talvez se confundam com histórias ouvidas mais tarde. O meu pai, por razões de saúde deixara a dura vida de jornaleiro agrícola na aldeia e arranjara emprego (graças à "cunha" de um parente padre) como porteiro na Quinta dos Olivais, onde funcionava o Seminário Maior do Patriarcado de Lisboa. A minha mãe, operária na antiga fábrica de fiação e tecidos de Torres Novas (uma "privilegiada" para os padrões da época, uma vez que beneficiava já de algumas regalias impensáveis para a generalidade do "proletariado" nacional), ficara na "terra", onde criava o filho António com a ajuda de numerosas tias ainda solteiras. A construção da nova igreja de Moscavide, um bairro operário às portas de Lisboa que começava a expandir-se com a emigração interna do pós-guerra, encaixado entre quintas como a dos Olivais, Candeeiro, Ferro, e Patacão... (alguma delas onde hoje é o bairro da Portela) e a linha de caminho de ferro do Norte, seria a oportunidade que o meu pai procurava para poder reunir a família, entretanto aumentada com o nascimento da minha irmã do meio, a Isabel. O pároco designado procurava um "sacristão" e embora a paga não fosse melhor, a promessa de casa e de algum trabalho para a minha mãe na limpeza da nova igreja, terá sido decisiva para a mudança. 


O meu pai, João da Silva (1922-2012) no escritório da Igreja de Santo António de Moscavide, onde foi empregado (sacristão e escriturário do cartório) entre 1956 e 1965. A minha mãe, Conceição Sousa (1925-2007) ocupou-se no mesmo período da limpeza da nova igreja.
Eu e as minhas irmãs (a mais nova, Leonor, já nasceu em Moscavide) com uma vizinha, frente à Igreja de Santo António de Moscavide. A solidariedade entre a vizinhança, condição de sobrevivência em tempos difíceis, reflecte-se na partilha do tecido para a vestimenta feita em casa. A vizinha, animadora das festas populares na "vila", emigrou pouco tempo depois para a Venezuela com toda a família e nunca mais voltou mas manteve contactos epistolares regulares com a minha mãe.
Ainda morámos alguns meses numa casa à espera de demolição (e onde mais tarde se construiu o posto local da PSP) mas depois mudámos para uma casa ao lado da igreja, que fazia parte da "Vila Fernandes", um tradicional conjunto de casas (final do século XIX?) dando para um pátio comum, em cuja frente passava ainda a velha calçada da estrada entre Lisboa e Sacavém, memória da estrada romana que entroncaria nas ruínas de uma ponte ainda visíveis no tempo de Francisco de Holanda (Século XVI). Segundo as imagens do Google Earth de 2015, esta casa mais uma ou outra vizinhas, são tudo o que resta dessa estrutura urbana original, mas deverão estar condenadas face às intenções de renovação urbana. Com efeito, por pura coincidência, soube há um par de anos que o Atelier do Arquitecto Nuno Simões (que trabalhou comigo na requalificação das estruturas de visita da Gruta do Escoural) estava a concorrer para um "projecto de revitalização do centro urbano de Moscavide", com especial incidência neste "meu espaço de infância". 

A casa da "Vila Fernandes" na actualidade, ao lado da Igreja de Santo António de Moscavide

A proposta do Atelier do Arqto Nuno Simões (desconheço  o seguimento co "concurso") de remodelação do largo da Igreja de Moscavide

De facto a "Vila Fernandes" representa para mim a origem remota do auto-reconhecimento, um difuso espaço temporal que se perde nos confins da memória e de que persistem apenas fragmentos. Aqui conheci os meus primeiros amigos e vizinhos, gente de pobre a remediada, que passava na rua as quentes noites dos Santos Populares mas cujos rostos já são apenas bruma. Das janelas que davam para a rua, ouviam-se com muito respeitinho, o soar na calçada dos cascos dos cavalos das patrulhas nocturnas da GNR, cujos capacetes prussianos nunca mais esqueci. No Café Mimoso na esquina em frente (e que curiosamente, sessenta anos depois, ainda resiste com a mesma designação) vi televisão pela primeira vez, por certo num domingo à tarde, em programa juvenil apresentado pelo eterno Júlio Isidro. Aqui fui cedo alertado para não "dar muita confiança" a um vizinho que era "político" (uma espécie de "peçonha" para os meus pais acabados de chegar de uma aldeia onde a religião ainda presidia a todo o ciclo da vida) porque lia um jornal suspeito, o "República"... e em nossa casa, à excepção dos jornais comprados ao quilo na mercearia (para forrar gavetas) só entrava, com muito atraso, algum "Novidades" ou alguma "Flama", esquecidos na vizinha sacristia. Daqui partia diariamente, após os seis anos de idade, sozinho ou com os colegas da vizinhança, para a escola primária da "Câmara", explorando as ruas movimentadas mas seguras do bairro de Moscavide. Primeiro para a escola do Leitão, uma sala infecta e ruidosa, localizada sobre o próprio mercado. Depois, a partir da segunda classe, para uma escola "a sério", do Estado Novo, que ainda hoje subiste com outras funções mas engolida pelo caos urbanístico.


A minha segunda escola primária (1959-1962). com dois corpos bem separados, para os rapazes e raparigas não se misturarem. Aqui me preparei para o exame de admissão à escola comercial e industrial que Liceu não era para todos...
Apesar de aprovado nos exames de admissão à escola industrial ou comercial  (1962) acabei por rumar, por força de todo o contexto sócio-familiar, ao seminário de Santarém, uma saída airosa para os melhores alunos das famílias remediadas (como ainda há pouco Clara Ferreira Alves lembrou na lúcida crónica do Expresso sobre os tempos do fascismo "Tão felizes que nós éramos"). Um curso próximo do currículo liceal (mas sem equivalência já que nestas como em muitas outras coisas, o Salazar não facilitava com o seu antigo colega Cerejeira...), preparava-nos para os exames no Liceu, em especial na área das Humanidades, o que me abriu alguns anos depois, as portas da Faculdade de Letras (1970). Daí às Portas do Ródão, onde viria a descobrir na ca Arqueologia, há mais de quarenta anos, seria apenas um pequeno mas decisivo passo. assunto já várias vezes aqui abordado

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