segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018


As mais antigas "estruturas de habitat" conhecidas do território português


No que respeita à comunicação e informação sobre Arqueologia, certamente reflectindo uma especial apetencia por parte do público, os "media" tendem por norma a sobrevalorizar o critério da "antiguidade". Seria pois expectável que, nessa lógica, um Museu tudo fizesse para conservar em exposição aquela que, provavelmente, ainda continua a ser a estrutura de habitat mais antiga identificada no território português, constituída pelos vestígios de duas lareiras e diversos buracos de poste associados aos restos de dois arcos de pedra, interpretados como bases de apoio de um "para vento" pré-histórico. Todo este conjunto se integrava, por sua vez, num solo pisado pelo homem do Paleolítico Médio (possivelmente do tipo Neanderthal), juncado de materiais de pedra talhada, classificados como Moustierenses. Esta classificação tipológica, entretanto confirmada por métodos de datação absoluta, aponta para uma antiguidade aproximada de 50 000 anos, o que lhe confere um cariz de extrema raridade mesmo a nível internacional. Estamos a falar, como é óbvio para a generalidade dos arqueólogos, pelo menos dos mais velhos, das "estruturas paleolíticas de Vilas Ruivas", identificadas e escavadas em 1978 e 1979, num terraço fluvial do Tejo, localizado imediatamente a jusante das Portas do Ródão, não muito longe da pequena aldeia (Vilas Ruivas) que lhe deu o nome.
As estruturas de Vilas Ruivas em primeira mão nas páginas da revista "HISTÓRIA", ed. O Jornal, Janeiro de 1980
https://www.academia.edu/35988140/Um_acampamento_do_Homem_de_Neanderthal_nas_margens_do_Tejo
O "terraço" de Vilas Ruivas, visto do Castelo do Rei Wamba, Portas do Ródão. Foto de ACS (anos 70)

Mas não é sobre o sítio arqueológico (hoje apenas um ponto numa fantástica paisagem que vale sobretudo pelo seu excepcional contexto geológico e panorâmico, pese embora o impacto dos recentes incêndios na região) que aqui queria deixar registo. Na verdade o tema proposto, visa recordar em particular a extraordinária operação logística (1980-1981) que um punhado de jovens arqueólogos (idealistas), tomaram em mãos, ao decidirem praticamente por sua conta e risco, "transpor" para Museu, a estrutura descoberta, pese embora a adversidade de todo o contexto.

À distância de quatro décadas, não consigo já ser rigoroso nos detalhes que conduziram à decisão de planear e executar a complexa operação museológica que está subjacente a este projecto. A descoberta e escavação das estruturas paleolíticas de Vilas Ruivas verifica-se entre 1978 e 1979 (em campanhas conduzidas nas férias grandes...), com o envolvimento geral da equipa do GEPP que mantivera a sua ligação ao Ródão, mesmo após o "afundamento da arte rupestre do Tejo", após a conclusão da Barragem do Fratel (1974- ver a este propósito ). Foi certamente após a campanha de 1979, na qual se revelara toda a complexidade e significado das estruturas de habitat, que a decisão de proceder à sua "musealização" (como hoje se diria) terá sido tomada. Para esse facto terá pesado a experiência adquirida por alguns de nós nas escavações de Pincevent, um acampamento de caçadores de renas (sic) paleolíticos  nas margens do Rio Sena, não muito longe de Paris, escavado por André Leroi-Gourhan no contexto de um grande projecto escola arqueológica ("chantier école"). Aí se procedia de forma quase sistemática, à moldagem das superfícies de ocupação humana postas a descoberto, com propósitos museolólgicos e científicos. Na campanha em que, como estudante estagiário, participei no Verão de 1973, para além da aprendizagem das mais evoluídas metodologias de escavação e registo (que poríamos em prática nos posteriores trabalhos do Ródão), tive a feliz oportunidade de acompanhar directamente todo o complexo processo de moldagem das estruturas expostas. De referir que este método não era para nós uma novidade absoluta. Já no salvamento da arte rupestre do Tejo, se recorrera à moldagem em "latex" da superfície decorada das rochas, metodologia que nos havia sido sugerida pelo assistente de Gourhan, Michel Brézillon, em contactos técnicos havidos em 1972 em Paris por Francisco Sande Lemos e Pinho Monteiro, entre outros. Mas, a obtenção de um molde de uma superfície praticamente plana (como eram as rochas gravadas do Tejo) estava longe dos desafios que representava a moldagem tridimensional de estruturas complexas. O assunto acabaria por me interessar de forma muito particular em Pincevent, tendo aí registado fotograficamente todas as suas fases, desde a preparação das áreas a moldar; passando pela aplicação  do latex para obtenção do "negativo"; e finalmente pela realização dos respectivos contra-moldes que uma vez invertidos sobre uma caixa de areia iriam servir de suporte à realização do positivo, o molde propriamente dito. Seguia-se a fase de acabamento (remontagem dos moldes e pintura) e de instalação museológica que, no caso, era feita emhangares anexos à própria escavação e que julgo ainda se conservarem localmente, pois o terreno havia sido adquirido pelo Estado francês. Regressado de França, prepararia ainda nesse ano de 1973, um "album técnico" com as provas fotográficas reveladas por mim num estágio informal que tive oportunidade de realizar com o fotógrafo José Pessoa, no laboratório do Instituto José de Figueiredo. Infelizmente esse "album" viria a perder-se, mas ficara o conhecimento e experiência que julgo terá sido determinante para a temerária decisão de 1979.

António Carlos Silva e João Ludgero, nas escavações de Pincevent (1973)

Moldagens em Pincevent. Aplicação directa do latex sobre a superfície a moldar. Neste caso ensaiava-se uma nova metodologia, visando a obtenção de áreas de maior dimensão. Neste caso o contra-molde recorreria a materiais resinosos, fibra de vidro e barras de alumínio, para evitar o peso do tradicional "gesso" (1973- foto de ACS)


Leroi-Gourhan, observa um molde positivo em gesso, acabado de destacar do contra-molde e antes da fase de acabamento (montagem e pintura). Foto de ACS, 1973.


André Leroi-Gourhan, (vestido de cossaco) e colaboradores num momento de descontração na campanha de 1973 em Pincevent. Foto de ACS



Aspectos das moldagens dos solos de habitat de Pincevent (imagens da NET)

Moldagem de lareira de Pincevent, exposta no Museu do Homem (Paris). Foto de ACS 1985.

O grande desafio que  há quatro décadas se nos colocava em Vilas Ruivas, era antes de mais de natureza logística. O acesso à escavação era sempre feito a pé (normalmente a partir da Fonte das Virtudes onde acampávamos e usando a linha de comboio da Beira Baixa que ali cruza em túnel a dupla crista quartzítica das Portas do Ródão). Para o transporte dos materiais pesados, contávamos com o apoio da câmara municipal de Vila Velha de Ródão e a destreza do seu motorista que por um estradão quase impossível descia com uma pequena camioneta, da aldeia mais próxima (onde terminava a "estrada"propriamente dita), até ao terraço fluvial de Vilas Ruivas, para numa primeira fase transportar todos os materiais indispensáveis: estruturas metálicas, madeiras de cofragem, bidons de latex, sacas de gesso. etc...Finalmente, naquela que terá sido a mais difícil operação no terreno, o transporte dos pesados mas frágeis contra-moldes em gesso, desde a escavação até ao Museu de Castelo Branco. Seria aliás este Museu (na época afecta ao IPPC) que, graças à visão do seu director de então (António Salvado), garantiu o apoio financeiro indispensável para a aquisição dos  materiais necessários para a concretização do projecto, todo ele executado em absoluto voluntariado, como era aliás normal na arqueologia da época.


Vilas Ruivas_ aspecto geral dos trabalhos de 1980, com a operação de moldagem em plena execução.
Sobre a metodologia de campo (obtenção dos negativos em latex e produção dos contra-moldes em gesso) ou mesmo sobre a execução dos moldes, seu acabamento e montagem museológica, não adiantaremos muito para além dos comentários às imagens com que ilustramos este post. Para quem se possa interessar mais sobre esses aspectos, aqui deixamos o link para o opúsculo  A transposição do solo de habitat de Vilas Ruivas (PDF)  da autoria conjunta de Luis Raposo e António Carlos Silva editado pelo Museu de Castelo Branco em 1981 na sequencia de todo este projecto.



Para facilitar o processo de moldadgem, optou-se por uma solução mista. Os blocos maiores seriam levantados previamente e devidamente marcados, moldando-se a respectiva base. Posteriormente seriam integrados na montagem final em museu. O conjunto da superfície a moldar foi por sua vez dividido em sectores de tamanho adequado à logística possível.

Preparação da superfície a moldar, já depois de retirados alguns dos blocos. 

Aplicação das primeiras camadas de latex, posteriormente reforçadas com tarlatana (rede têxtil).

Alguns dos "contra-moldes" de gesso em fase de secagem, ainda "in situ"

Já no Museu de Castelo Branco, montagem do puzzle de "contra-moldes" numa caixa de areia preparada para o efeito. Sobre esta superfície seriam aplicados os respectivos "negativos de latex".

Na execução do molde positivo, optou-se por produzir uma só peça. Essa opção implicou o uso de materiais diversos do tradicional gesso, nomeadamente resinas sintéticas, fibra de vidro e  espuma de poliuretano como base, um material que começava então a aparecer no mercado.

A delicada operação de inversão do molde positivo com a ajuda do pessoal do Museu, facilitada pelo recurso aos novos e mais leves materiais, 

A pintura e os retoques finais já com os calhaus originais repostos nos respectivos lugares.

A operação de moldagem e montagem das estruturas paleolíticas, passou por duas fases principais. A de campo na campanha do Verão de 1980 e a de Museu, concretizada já no início de 1981. A par da execução do molde propriamente dito, a peça central de todo o projecto, e uma vez decidida pelo director do Museu o local para a sua exposição pública, seria necessário planear o seu enquadramento museológico. Hoje seria inconcebível avançar para essa fase sem a cooperação de todo um conjunto de especialidades contratadas externamente pelo Museu. Mas neste caso, a habilidade e bom senso dos próprios arqueólogos, associada à própria mão de obra do museu seriam suficientes, seguindo o modelo, cada vez mais raro nas nossas instituições, de administração directa. E não se julgue por isso que a solução encontrada ou a sua execução fosse menos profissional, pelos parâmetros da época. Basta ler o opúsculo já citado para perceber que, ao contrário do que por vezes hoje acontece em projectos de milhões, por trás da solução museológica proposta havia o respectivo programa justificativo, cuidadosamente preparado. Aliás, não foi por acaso que o seu primeiro autor, o Luis Raposo, apesar do primado da sua formação em Arqueologia, viria posteriormente a ter uma carreira tão destacada na museologia portuguesa, sendo o actual Presidente do ICOM Europa. Naturalmente, a dimensão da estrutura e as características do espaço disponível (a Sala 1 destinada às colecções pré-históricas) acabariam por impôr uma solução quase definitiva (julgávamos nós então) o que condicionaria a utilização futura do espaço. Aceite essa circunstancia pelo Director do Museu, a exposição do solo de habitat de Vilas Ruivas, seria formalmente inaugurada em 11 de Abril de 1981. Refira-se aqui, em justificação do cumprimento de prazos tão apertados, que a fase final deste projecto coincide no tempo com uma circunstancia que acabou por ser decisiva para a sua eficácia. A realização dos trabalhos arqueológicos no Ródão em pleno Verão, não se explicava apenas por condições climatéricas (aliás pouco favoráveis nessa estação do ano) mas sobretudo pela disponibilidade da maior parte dos participantes, alguns já professores do ensino secundário (como era o meu caso e o do Luís Raposo) outros ainda estudantes. Em Outubro de 1980 (já após os trabalhos de campo de moldagem) eu e o Luís Raposo integraríamos a equipa que Francisco Alves conseguiu requisitar para o processo de renovação do Museu Nacional de Arqueologia. Essa circunstancia deu-nos a possibilidade de, pela primeira vez em quase uma década de trabalhos na arqueologia do Ródão, ali nos encontrarmos finalmente como "arqueólogos profissionais", durante as semanas do Inverno de 1981 em que preparámos e executámos toda a montagem expositiva.

Aspecto geral da solução museológica inaugurada em 11 de Abril de 1981
Fotos do dia da inauguração (11 de Abril de 1981)

Nota Final em jeito de desabafo:


Em data que desconheço mas que julgo ser bastante recuada (anos 90 do século passado?) e posterior à aposentação do Dr. António Salvado, o solo de habitat de Vilas Ruivas foi retirado do seu local de exposição e a respectiva exposição de enquadramento desmontada, certamente no âmbito de um justificado processo de "modernização" do Museu. Penso no entanto que nenhum dos arqueólogos responsáveis pela sua instalação foi ouvido ou consultado sobre o seu destino ou local de armazenamento. Pelo menos eu não tenho qualquer informação sobre o assunto. É verdade que, como já referi, apesar de integrar alguns elementos originais, esta estrutura híbrida se constituía antes de mais como um objecto museológico de interacção com o público (o que hoje é conseguido pelas aplicações informáticas 3D tão na moda...). No entanto, representava algo de muito raro se não mesmo único a nível nacional, pelo que se teria justificado um procedimento mais consentâneo com essa circunstancia.

O antes... (1981)

E o depois: a actual sala de Pré-história no Museu de Castelo Branco (foto do SITE da DGPC)

Outras entradas das "Pedras Talhas" relacionadas com este tema:


http://pedrastalhas.blogspot.pt/2014/10/o-paleolitico-do-rodao-as-portas-do.html

http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/05/a-arqueologia-do-vale-do-tejo-na-tsf.html


ADENDA (20/2/2018)


Este post suscitou alguns comentários (através do FACEBOOK) que, pelo seu interesse para o tema, jugo ser curial aqui registar:

Francisco Sande Lemos:

 Excelente texto como é habitual e com ilustrações esclarecedoras. Após a surpresa e reflectindo com lucidez, a exclusão da moldagem da lareira de Vilas Ruivas na reorganização sem consultar os arqueólogos é normal. Também a exposição permanente do Museu de D. Diogo de Sousa foi realizada sem consultar os arqueólogos responsáveis por Bracara Augusta. Um raro testemunho da passagem dos neardentais pelo Vale do Tejo é algo demasiado pré-histórico e antigo para a "museologia oficial" portuguesa (provocação intencional....obviamente). A verdade é que o abrigo e a lareira de Vilas Ruivas são habitualmente citados na bibliografia europeia da especialidade, pois continua a ser uma das raras evidências do modo como os neardentais, organizavam os seus acampamentos. Basta consultar a net: Origins of Human Innovation and Creativityhttps://books.google.pt/books?isbn=0444538224
Scott Elias - 2012 - ‎Science

The use of different parts of the site for different functions (structured intrasite variability) also needs much better dating for effective testing in Neanderthal assemblages. It has been described for sites in Portugal (Vilas Ruivas), Spain (Abric Romanı, Roca dels Bous), France (La Folie, Abri de la Combette, Vinneuf, Pucheuil, ...

Pormenores, sem relevância maior: a estação de Vilas Ruivas foi descoberta em 1971, pelo Jorge Pinho Monteiro e por mim, tendo a sua importância apenas sido reconhecida anos mais tarde, a partir de 1976, salvo erro. Quanto à deslocação a Paris, na Primavera de 1972, cujo excelente relatório está inédito, além dos nomes citados, participaram Maria Angeles Querol, Susana Lopes e Vítor Oliveira Jorge.

Luis Raposo:

Obrigado, António Carlos, por mais este belo resumo histórico. Também lamento, e muito, a desmontagem do solo de habitat sem a minha e nossa concordância. Disseram-me que as pedras e o suporte foram guardados (desconheço em que condições). A anterior presidente da Câmara Municipal de Vila Velha de Ródão, tão incomodada como eu, dispos-se logo a receber em Ródão o solo e eu dispus-me a ajudar na montagem. Foi feito estudo prévio do Museu, da autoria do arqto. Mário Benjamim, onde o solo constava e todo o programa museológico foi começado a fazer por mim, pelo António Martinho Baptista e pelos amigos de Ródão. Como depois faltou o dinheiro e mudou a Câmara, tudo ficou em espera até hoje. Mais recentemente, já com o Museu Tavares Proença sob tutela municipal (do que discordei), o vereador responsável pelo Museu contactou-me, com o Pedro Salvado, para me pedir apoio na redefinição do programa museológico, dizendo que contava com o solo. Como sempre, e lembrando aliás muito o nosso grande e inspirador amigo Dr. António Salvado e a sua mulher, A Dra. Adelaide Salvado, dispus-me a colaborar. Vamos a ver...

Pedro Miguel Salvado

O Dr. Fernando Raposo já não é o Vereador da Cultura da CMCB. A gestão técnica do Museu está entregue à chefe de divisão Drª Teresa Antunes e a politica (sic) ao assessor do Presidente Dr. Luís Correia ( que anseia colocar o Museu na sua matriz cientifica fundacional) para a área da cultura, o nosso amigo Carlos Semedo. É vontade da Sociedade de Amigos do MFTPJ, já manifestada junto da nova tutela, que o solo de habitat regresse ao Museu, reforçando e cumprindo a geografia de influência gizada pelo seu fundador e pai da arqueologia regional da Beira Baixa Francisco de Tavares Proença Júnior: Um Museu espelho do território da Estrela ao Tejo.








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