domingo, 1 de abril de 2018


A GRUTA DO ESCOURAL E A ARQUEO-ACÚSTICA 
versão 0.2


Há cerca de 3 anos, correspondendo a um desafio do colega Fernando Coimbra, professor no Instituto Politécnico de Tomar, acompanhei com alguma curiosidade mas também algum cepticismo, Paolo Debertolis, um médico italiano, também arqueólogo "acústico", na busca de possíveis especiais efeitos sonoros ou, por outras palavras, de respostas acústicas diferenciadas, nalguns monumentos megalíticos de Guadalupe e também na Gruta do Escoural. ver breve referencia aqui 

Bruno Fazenda, preparando a emissão e gravação de mais um sinal sonoro no Escoural (coluna em primeiro plano). Um dos microfones está próximo do motivo rupestre, enquanto o outro, para comparação, está num local próximo mas sem qualquer vestígio rupestre.
Desde então não tive conhecimento de qualquer resultado das várias experiências e gravações sonoras efectuadas. Recentemente, o Fernando Coimbra contactou-me de novo. Esclarecida a ausência de resultados dos anteriores testes (segundo referiu uma mera experiência pontual sem mais consequencias, perante a reduzida experiência arqueológica do médico italiano) o Fernando, dado o seu crescente interesse nesta temática tão específica, por minha intermediação, julgando que eu ainda estava no activo, vinha propor à Direcção Regional de Cultura do Alentejo, a realização de novos testes agora centrados na Gruta do Escoural. Desta vez, porém, os testes seriam conduzidos por um jovem cientista português, Bruno Fazenda, investigador residente no Acoustics Research Centre, da School of Computing, Science and Engineering, Universidade de Salford, uma das principais instituições de investigação acústica a nível mundial e que coordenara recentemente um conjunto de testes acústicos em meia dezena de grutas rupestres do Norte de Espanha. Obtidas as autorizações necessárias junto da DRCA, os testes acústicos realizaram-se recentemente na Gruta do Escoural, sob a direcção de Bruno Fazenda e a colaboração do Fernando Coimbra, do André Pinto (jovem investigador em temáticas acústicas, formado na Universidade de Évora) e de Raquel Castro, doutorada em multimédia. A minha presença justificou-se essencialmente, para apoio à selecção e localização dos "motivos rupestres" (pinturas ou gravuras) cujo posicionamento no interior da cavidade, seria avaliada do ponto de vista da qualidade da respectiva "resposta acústica". 

Diga-se, entretanto, que sobre esta matéria da "arqueo-acústica", e salvo a curta experiencia prática já referida, pouco ou nada conhecia, nomeadamente no que respeita à sua aplicação à investigação de grutas rupestres. Foi portanto especialmente útil o acesso aos resultados dos testes em Espanha, publicados sob a direcção do próprio Bruno Fazenda no conceituado Journal of the Acoustic Society of America. Com efeito, apesar de há muito serem conhecidos instrumentos musicais (nomeadamente flautas e apitos em osso) descobertos em contextos paleolíticos e daí se depreender a existência de rituais pré-históricos propiciados através de actividades musicais ou sonoras, datam apenas dos anos 80 do século passado, os primeiros ensaios que de forma organizada e sistemática, ainda que com recursos técnicos limitados, procuravam provar a existência de uma relação entre as características das respostas acústicas e a localização dos motivos rupestres nalgumas grutas franceses. São especialmente conhecidos e citados os trabalhos de Iégor Reznikoff e Michel Dauvois em grutas como Le Portel, Niaux, Arcy-sur-Cure ou Isturitz, esta especialmente significativa pela descoberta de vestígios de instrumentos musicais. Apesar da forte convicção daqueles investigadores, as limitações técnicas e metodológicas não permitiram ir além do levantamento de hipóteses muito discutíveis. Tentando ultrapassar aquelas dificuldades, a equipa liderada por Bruno Fazenda e na qual participaram conhecidos arqueólogos, munida dos mais modernos recursos tecnológicos, procurou estabelecer uma metodologia que de forma objectiva e através de parâmetros mensuráveis, avaliasse a qualidade acústica dos locais escolhidos pelos paleolíticos para efectuarem os motivos rupestres. Centrando-se num pequeno conjunto de grutas rupestres do Norte de Espanha, nomeadamente El Castillo e Tito Bustillo entre outras, e analisados os respectivos resultados com recurso à estatística, o estudo permitiu chegar às seguintes conclusões: os motivos rupestres em geral e as linhas ou pontos, em particular, parecem estar localizados preferencialmente em sítios cuja reverberação é moderada e onde a resposta acústica às baixas frequências evidencia efeitos de ressonância. No entanto, conclui ainda o estudo, uma associação entre a localização dos motivos rupestres dentro da gruta com determinadas especificidades acústicas, é estatisticamente fraca ainda que suficiente para sustentar a hipótese de determinados efeitos sonoros e respectivas características terem influenciado o comportamento humano. 

Face ao alcance muito limitado destas conclusões, facto reconhecido pelo próprio Bruno Fazenda (actualmente envolvido numa ampla investigação acústica sobre Stonehenge), aquele estudo vale sobretudo pelo estabelecimento de uma metodologia rigorosa que passará a servir de padrão obrigatório em trabalhos futuros e que no Escoural, aquele investigador teve oportunidade de ensaiar de novo. Pessoalmente, no entanto, pese embora o reconhecimento quase intuitivo do certamente importante papel dos sons nas múltiplas facetas do dia a dia da humanidade pré-histórica, julgo que dificilmente, no caso de uma cavidade tão pequena como a do Escoural, as eventuais variáveis de qualidade acústica, poderiam ter influenciado a escolha da localização da centena de motivos pintados ou gravados ali identificados (mesmo partindo do princípio pouco provável que a sua grande maioria teria sido produzido pela mesma comunidade). De qualquer modo, os testes efectuados na Gruta do Escoural,  com sucessivas gravações digitais de sinais sonoros percorrendo toda uma escala dos mais graves aos mais agudos, uma vez analisados estatisticamente e devidamente publicados, passarão a ser, tanto quanto me é dado conhecer, uma estreia absoluta na arqueologia pré-histórica portuguesa. Mais uma a que esta Gruta ficará ligada.

Para eventuais interessados, aqui fica a nota bibliográfica que serviu de apoio a este post, mostrando que até nas disciplinas mais improváveis, os jovens investigadores portugueses, estão hoje a "dar cartas", ainda que, quase sempre como "imigrantes".

Cave acoustics in prehistory: Exploring the association of Palaeolithic visual motifs
and acoustic response. Bruno Fazenda, Chris Scarre, Rupert Till, Raquel Jiménez Pasalodos, Manuel Rojo Guerra, Cristina Tejedor, Roberto Ontañón Peredo, Aaron Watson, Simon Wyatt, Carlos García Benito, Helen Drinkall, and Frederick Foulds; The Journal of the Acoustical Society of America 142, 1332 (2017);



O equipamento básico para os testes acústicos: gravador digital e 2 microfones de alta perfomance, e a coluna para emissão do sinal sonoro


Breve briefing antes do início dos testes acústicos na Gruta do Escoural: a partir da esquerda, Bruno Fazenda, André Pinto, Raquel Castro e Fernando Coimbra

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